quarta-feira, 17 de março de 2010

Sonho de Criança

Quando eu era criança, eu tinha um sonho: ver um episódio como este que aconteceu ontem, às 19:30, na Rua dos Andradas.

Pois são 19h30 e eu estou na Rua dos Andradas. Na minha frente, um negrão gordo caminha aborrecido por entre as mesas de plástico que congestionam a calçada em frente à Casa de Cultura. Caminha meio rengo, com os chinelos despencando dos pés, e leva pela coleira um cachorro de pelo sujo. É um mendigo. Daqueles que puxam conversa e vivem da arte de importunar os que passam por perto.

De repente, o negrão gordo descobre do outro lado da rua um office-boy (pelo menos tinha cara de office-boy) andando com a camiseta do Grêmio. Para e olha com olhos de consternação, como se fosse um tio do SOE flagrando uma sem vergonhice no corredor do colégio. Fica ali, olhando por alguns segundos, até que berra em meio à multidão que engole chopes na calçada:

- OLHA LÁ! OLHA LÁ! SETE ANOS SEM TÍTULO! SETE ANOS!

E desata a rir uma risada grave e melodiosa.

O office-boy acusa o golpe. Para no outro lado da rua e procura pelo detrator. Eu, achando a maior graça, diminuo a marcha e fico olhando. Ao que percebo um detalhe interessante: nas mesas das ruas, sentadas, todas as pessoas estão, como eu, olhando para o negrão gordo. Algumas riem, outras apenas esperam. Mas ninguém ousa retrucar o negrão. Talvez por ele ser gordo. Talvez por ele ter um cachorro de pelo sujo nas mãos. O certo é que os bares da Rua dos Andradas são, neste momento, uma imensa platéia esperando o espetáculo do seu Rei Momo maltrapilho. E ele continua:

- SETE ANOS SEM TÍTULO! VÊ SE EU POSSO! HAHAHAHA!
No outro lado da rua, o office-boy gremista faz um sinal com o dedo e retoma o passo. Depois se vira para trás e berra: -"UM A UM COM VERANÓPOLIS!". Mas nada disso demove o negrão gordo de seu mantra oficial:

- O CARA TÁ SETE ANOS SEM TÍTULO! SETE ANOS!

Enquanto isso, as pessoas nas mesas -- cinquenta, no mínimo -- seguem impassíveis à espera de um desfecho. Nenhuma delas fala nada contra o negrão gordo. Nem mesmo um gremista se insurge contra o vozeirão que corta a noite em frente à Casa de Cultura. E é neste ínterim que eu resolvo intervir simpaticamente:

- Ô meu, tu tá errado.

O negrão gordo me encara, surpreso.

- Tu tá errado. Eles ganharam a Taça Fernando Carvalho.

Para minha surpresa, não é apenas ele que explode numa risada grotesca. Nas mesas dos bares, a grande maioria dos presentes riem juntos conosco. São todos colorados como eu e o negrão gordo. Os outros, em minoria, estão quietos. Não falam nada. Não vale a pena.

Quando eu era criança, eu tinha esse sonho. Ontem, às 19:30, eu vi esse sonho se realizando. E quase pude sentir a criança que eu era indo embora junto com aquele office-boy que, humilhado, dobrou a esquina sem dizer nada.

Tirei essa do Beco do Sapulha

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